Gradiva: uma fantasia ou a descoberta do amor?

Gradiva: uma fantasia ou a descoberta do amor?

Norbert Harrold, jovem cientista interessado em arqueologia, por herança familiar, descobre em coleções romanas antigas, um baixo-relevo que o impressiona de modo muito especial. Uma figura de uma jovem mulher, representada de corpo inteiro e como se estivesse andando, a quem nosso doutor atribuiu um encanto simples e natural, capaz de se tornar a fonte de inspiração de sua própria vida. Ao chamá-la de Gradiva, aquela que avança, diz que tem o andar mais bonito entre todas as moças da cidade onde viveu.

Sua imaginação fértil o leva a “lembranças” de que a mulher representada no baixo-relevo teria sido vista por ele andando entre as minas de Pompéia, ou mesmo entre as ruas da Alemanha. O andar feminino passa a despertar sua atenção até então jamais voltada para a figura da mulher e em especial para a sedução feminina.

Começa a se dar conta de situações antes quase inéditas em seu mundo, como a existência do amor entre os casais, algo que chegava a incomodá-lo. Talvez pensasse ser quase uma perda de tempo.

Levado por seus sonhos retorna a Pompéia e de fato vislumbra em seu primeiro passeio um vulto de mulher que desliza entre as ruínas da cidade soterrada pelo vulcão Vesúvio. Fica confuso: um fantasma ao meio-dia e depois de mais de dois mil anos, tão perfeito…?

Corre a alcançá-la em estado de estupefação e delírio. Ao se aproximar, muito nervoso e fora de seu estado natural, dirige-lhe a palavra “em grego”…  Talvez, fosse uma deusa do Olimpo. Nenhuma resposta. Depois repete a frase “em latim”… Quem sabe a filha de um nobre romano? Silêncio absoluto. Entretanto, a bela aparição continua olhando-o e sorrindo: “Me chamo Zoé.” Inteiramente atônito escuta em sua língua natal, o alemão: “Se quiseres falar comigo terá que ser em alemão.“

Passa a retornar a mesma hora e ao mesmo lugar para encontrar a sua adorada aparição e o diálogo entre os dois vai acontecendo de modo estranho e perturbador. Embora, Zoé , este era seu nome verdadeiro, ora desenhe cenas da cidade soterrada, ora “coma um lanche” como fazem os mortais, em sua simplicidade, Norbert continua em seu torpor: funde Zoé/a vida/com Gradiva (aquela que anda).

Confunde seus finos sapatos com sandálias usadas na antigüidade. Em seguida, vem uma lembrança de mulher vista nas ruas de Berlim, cujos pés estavam guardados em sapatos de cor muito clara. Mas é seu inconfundível andar que o faz acreditar que Zoé/Gradiva são uma única pessoa. Mas tinha medo de aproximar-se e vê-la se esvair como fumaça.

Em um de seus encontros com a jovem, um inseto atrevido pousa-lhe na mão e Norbert, num ímpeto protetor, bate no intruso e para sua surpresa “a mão era humana”!

Seu primeiro movimento foi fugir por entre os pilares dos jardins. Os olhos e os lábios de sua bela explodiam em um riso irônico. Ao mesmo tempo, lhe devolveu a possibilidade de falar, mas não sabe em que pessoa dirigir sua fala. “Teu cérebro parece confuso, Norbert, mas já estou acostumada. Poderias falar comigo a cem léguas daqui, em frente a tua casa, onde está minha janela. Moro com meu pai, Richard, o professor de zoologia, que tão bem conheces.“

Os olhos de Norbert arregalaram-se como jamais o haviam feito antes: “A senhorita é Zoé Bertang?”

“Se nesses últimos anos o senhor se desse ao trabalho de lançar os olhos sobre mim, talvez tivesse percebido que sou aquela menina que algumas vezes brincava e que outras brigava, mas sempre sua companheira de folguedos. ”

Passa a fazer severo sermão a seu recém e, ao mesmo tempo antigo e confuso amigo, reclamando que a havia abandonado, já se sentia sozinha, pois seu pai preferia a companhia dos bichos à da filha.

Norbert responde-lhe: “Que alguém tinha primeiro que morrer para encontrar, finalmente, a vida.“ Assim diz a arqueologia e minha querida amiga, Bertang e Gradiva tem o mesmo sentido, pois são línguas clássicas e querem dizer ambas “aquela que resplandece ao andar”.

E então, Norbert Harrold e Gradiva – Rediviva – Zoé Bertang dão-se as mãos e, em pleno sol do meio-dia, caminham sobre as lajes e alcançam, finalmente, o outro lado da rua, deixando as ruínas de Pompéia para trás, no passado.

Como vimos, Gradiva é a estória de um jovem arqueólogo e de seu tortuoso reencontro com sua musa da infância. A figura de Gradiva foi pintada por Salvador Dali (chamava sua mulher de Gala Gradiva). André Breton deu-lhe o nome de uma galeria de arte. Tornou-se, ainda, uma musa do Surrealismo.

Freud para explicar a idéia do inconsciente, diante do romance de Jensen, estabelece um paralelismo entre o método arqueológico e o psicanalítico. Também, vem nos ajudar a entender a força da transferência nos relacionamentos e o rompimento do sujeito com seu narcisismo primário.

Katia Santos – Psicanalista

maio de 2006

Resumo adaptado do romance do escritor alemão Wilhelm Jensen (1911), que Freud consagrou em ‘Delírios e Sonhos na “Gradiva”’ de Jensen (1907)